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O ITCMD e a distribuição desproporcional de lucros

Gabriel Quintanilha

Com a disseminação das holdings como instrumento de planejamento patrimonial e sucessório, muitos questionamentos têm sido levantados pelos Fiscos das três esferas. Debates surgem com relação à integralização dos imóveis e incidência do ITBI, de competência dos municípios, a União questiona a distribuição de lucros em valor fixo mensal sem a determinação de prolabore e, na esfera estadual, ganha força o debate acerca da incidência do ITCMD na distribuição desproporcional de lucros pelas sociedades, assunto que objeto do presente.

            Muitas empresas familiares são constituídas como holdings, quer seja de participação societária ou patrimonial. Com isso, pais e filhos passam a ser sócios nesses empreendimentos e, muitas das vezes, por opção ou pelo fato da maior parte do patrimônio ser de titularidade dos pais, a distribuição de quotas societárias é feita garantindo a maioria da participação aos integrantes da primeira geração.

            Em razão disso, a distribuição de lucros não segue a quantidade de quotas societárias distribuídas aos integrantes da sociedade, sendo feita de forma desproporcional, atraindo o olhar da fiscalização estadual.

            O Código Civil autoriza a distribuição desproporcional de lucros em seu art. 1.007[1] e, para que seja regular, deve haver previsão nos atos constitutivos da sociedade e nas deliberações societárias, não havendo a previsão de qualquer outro requisito.

            Assim, quando ocorre deliberação no sentido da distribuição desproporcional, o sócio renuncia à parte dos lucros que lhe cabe em benefício de outro sócio, caracterizando uma liberalidade, que atrai a incidência do ITCMD.

            Nesse sentido entendeu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento do processo nº 1089011-58.2023.8.26.0053[2] que ao analisar o caso concreto identificou que não havia propósito negocial para a distribuição desproporcional dos lucros da empresa, mas somente a existência de animus donandi.

            Frise-se que no caso citado, o Tribunal aprofundou a análise fática para identificar o motivo dos sócios não receberem a distribuição de lucros de acordo com a sua participação societária e concluiu que não havia fundamentos para tal, o que caracterizaria uma mera liberalidade. No caso concreto, a maioria da participação era detida pelos pais, que transferiram os lucros aos filhos que sequer exerciam a administração da empresa. Com isso, ainda que prevista no contrato social e autorizada pelo Código Civil, a distribuição desproporcional era na verdade uma doação a ser tributada pelo imposto estadual, nos termos do art. 155, I da CRFB.

            O caso citado não é isolado. O Tribunal de Justiça de São Paulo também julgou o processo nº 1087688-18.2023.8.26.0053[3] no sentido de que “a distribuição desproporcional de lucros, sem justificativa negocial clara, foi considerada dissimulação de doação.”

            Como se pode ver, de acordo com as decisões acima citadas, a distribuição desproporcional de lucros somente pode ser oponível ao Fisco, de modo a afastar a incidência do ITCMD se houver justificativa negocial, ou seja, quando o sócio recebe um montante maior como contraprestação por uma conduta por ele praticada.

            Entretanto, tal conduta merece atenção, ao passo que se a referida distribuição desproporcional de lucros estiver relacionada com a atividade laboral do sócio, poderá atrair a incidência do imposto de renda, caso seja caracterizada como contraprestação do trabalho.

            Assim, para evitar a incidência do ITCMD, de acordo com a construção jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, as estruturas societárias devem ser ajustadas para representar um propósito negocial na distribuição desproporcional de lucros, caracterizando uma relação entre a postura do sócio e o valor por ele recebido.

Por fim, como se não bastasse, para evitar o enquadramento como pró-labore, não deve também ser uma contraprestação pelo trabalho, caso contrário atrairá a incidência do imposto de renda da pessoa física.


[1] Art. 1.007. Salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas.

[2] APELAÇÃO – MANDADO DE SEGURANÇA – ITCMD – DOAÇÃO TRAVESTIDA DE DISTRIBUIÇÃO DESPROPORCIONAL DE DIVIDENDOS – IMPOSSIBILIDADE DE AFASTAMENTO DA TRIBUTAÇÃO REFERENTE À DOAÇÃO – Pretensão mandamental voltada a reconhecer o direito líquido e certo do impetrante de não ser compelido ao pagamento do ITCMD incidente sobre a distribuição desproporcional de lucros realizada pela sociedade DAVILAR PROJETOS E EMPREENDIMENTOS LTDA., em 05/01/2017, ou, alternativamente, a redução da multa de 100% do valor do tributo – inadmissibilidade – a doação difere da distribuição desproporcional de lucros lícita em razão da liberalidade espontânea estar presente na primeira situação e o propósito negocial na segunda – ausente, no caso, a razão negocial, e presente a liberalidade espontânea, assim considerado o animus donandi, de modo que a transferência do patrimônio da sociedade para os sócios (não administradores à época), ainda que com aparência de distribuição desproporcional de lucros, caracteriza-se como doação – causae debendi válida para a lavratura do AIIM nº 4.152.021-0 – MULTA TRIBUTÁRIA – Revisão do entendimento anterior, de modo a uniformizar a jurisprudência desta Corte (art . 926 do CPC) – Multa tributária punitiva fixada em patamar superior a 100% do valor do tributo – Caráter confiscatório não configurado – Precedentes do C. Supremo Tribunal Federal e desta E. Corte – sentença de parcial concessão da ordem de segurança mantida. Recurso do impetrante desprovido. (TJ-SP – Apelação: 10890115820238260053 São Paulo, Relator.: Paulo Barcellos Gatti, Data de Julgamento: 16/12/2024, 4ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 28/01/2025)

[3] DIREITO TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. ITCMD. RECURSO DESPROVIDO. I. Caso em Exame 1. Mandado de segurança impetrado para obter a nulidade de autos de infração por suposto não recolhimento de ITCMD. Sentença pela qual foi denegada a ordem. Apelação dos impetrantes sustentando não se tratar de doação, mas de distribuição desproporcional de lucros, a afastar a incidência de ITCMD. II. Questão em Discussão 2. Determinar se a distribuição desproporcional de lucros caracteriza fato gerador do ITCMD. III. Razões de Decidir 3. Em mandado de segurança, é necessário demonstrar direito líquido e certo, o que não foi comprovado pelos impetrantes. 4. A autoridade tributária pode desconsiderar atos que dissimulem o fato gerador do tributo. A distribuição desproporcional de lucros, sem justificativa negocial clara, foi considerada dissimulação de doação. IV. Dispositivo e Tese 5. Recurso desprovido. Tese de julgamento: 1. A distribuição desproporcional de lucros sem justificativa negocial pode ser considerada dissimulação de doação para fins de ITCMD. 2. A ausência de comprovação de direito líquido e certo inviabiliza a concessão de mandado de segurança. Legislação Citada: Código Civil, art. 1 .007, art. 538; Lei Estadual nº 10.705/2000; Código Tributário Nacional, art. 116 Jurisprudência Citada: Ap . nº 0011435-14.2011.8.26 .0348, Rel. Des. Sidney Romano dos Reis, j. 04/11/2013; RMS n. 13.514/TO, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, j . 20/02/2003 (TJ-SP – Apelação Cível: 10876881820238260053 São Paulo, Relator.: Maria Olívia Alves, Data de Julgamento: 12/02/2025, 6ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 12/02/2025)

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